sexta-feira, 28 de agosto de 2009

"Anão vestido de palhaço mata oito"

A viajem de volta pra Tucuruí estava tranquila, boa demais pra ser verdade. Comi uma cochinha de rodoviária bem engordurada, bebi uma lata de skin bem geladinha. Havia comprado uma carteira de Black, sabor canela, e fumado dois antes que o ônibus partisse de Marabá. Era noite paraense, negra como os cabelos das nativas, quando o céu limpo é ofuscado pelas luzes da cidade, e não podemos ver as estrelas. Um cara gago sentado do meu lado havia me mostrado uns livros de teologia protestante. Afinal senti um alívio; não, não flatulei. Desde o início da viajem que já durava quase dois dias, não haviamos trocado um oi. Me sinto meio desumano às vezes, e me senti quando o vi tentando tocar nalgum assunto, sutilmente. Na tarde do dia anterior, eu estava meio lezado ainda do que havia fumado antes de viajar, fui bastante lacônico com ele. Sua própria gaguice pareceu contrangê-lo, e meu manancial cristão de atitudes virtuosas estava seco, então continuei curtindo aquela sensação boa sozinho. Pois bem, depois de sairmos de Belém, começamos a conversar sobre religião, e descobri nele um entusiasta no assunto, tanto quanto eu sou com o ocultismo, que, afinal de contas, permeia todas as religiões. Falamos sobre anjos, santos e o "fim dos dias", e eu folheei uns livros interessantes dele. Estávamos há poucas cidadelas de tucuruí, quando eu cochilei. Acordei com um som de tiro e pensei ter sido o pneu estourando, quando senti o cheiro de pólvora.
-Pára êz ônibus! Pó pará! Cê qué morrê maluco?
Fiquei confuso, não diria pasmo, mas já desanimado com o que sabia que estava acontecendo, e, realmente, muito emputecido o que eu sabia que iria acontecer. Aquela frase tão usada pelos adultos quando seus adolescentes violam algo ou praticam tal irregularidade, sempre o mesmo jargão: "você pode pensar 'nunca acontecerá comigo' jovenzinho", achando que não oníricos, em suas posições de responsáveis pelos rebentos, "nunca acontecerá comigo". Eu pensei na hora, "logo comigo...". Bem, levei tudu na esportiva. O cheiro de brau que eles exalavam era muito forte, todos os cinco ou seis ladrõezinhoas. Logo vi que estavam muito doidões. Pareciam ter vindo de uma plantação clandestina de Goianésia ou El Dorado dos Carajá, citadelas "fim do mundo", no melhor estilo Mad Max, e com as melhores risadas também. Isso mesmo, eu até posso ouví-los, Thiago, Saimon, Pastor, foi uma onda errada, como diria Plínio... Que onda!
-Todo mundo pru fundão! Todo mundo!-gritavam enquanto entravam pela porta do ônibus -Mãos pra cima! E os espertin leva bala!-disse um dos criminosos, um muleque bem baichinho; aliás, todos eram bem novos e magrinhos, vozes finas de mancebos.
-Relógis, celulá e anéu, aqui no saco!-disse um, enquanto outros três nos apontavam com pistolas-Colaris tamém!
Bem, tenho que admitir, não gosto de falar nesse assunto, por mais que seja podreira, e por mais que eu ame podreiras... Há um mês estou refazendo meus documentos perdidos. Um teclado da yamaha novo em folha, um celular bacaninha que eu usava pra tirar fotos, dei adeus. Porra! Estava começando um hobby bacana tirando fotos com ele... Bem, depois fomos encaminhados pelos ladrões a sairmos. Onde estávamos eu não fazia idéia de como fomos parar. Era uma estrada de terra no meio do mato, bastante alto, entre rochedos arbustivos. Depois fui ficar sabendo que eles ameaçaram o motorista com uma arma se não saíssem da rodovia, aos gritos, montados em motos. Todos em pé, iluminados pelo farol do ônibus, soubemos que estávamos realmente fudidos. Jogamos nossas carteiras, nossos sapatos, no meu caso, fiquei de hawaiana, até a hora em que um deles se simpatizou com ela.
-Óia só gente! O malandro escondeu cem conto no tênis!-gritou um dos ladrões ao pegar os sapatos de um velho. Todos gatunos riram.
Ficamos em pé com as mãos na cabeça por um tempo difícil de precisar, observando tudu. Uns em estado de choque, outros com um olhar distante. Eu, vendo isto tudu da maneira lúcida que os insanos vêem, fiquei vendo qual passageiro iria começar a tremer primeiro. O pobre motorista devia estar cansado, pois suas pernas pareciam bengalas de bambú sob o apoio trêmulo de um velhinho com hipotermia. Uma mulher chorava desesperada com um bebê no colo. Alguém tinha de apelar pra dramaticidade! Tudu bem, sei que não era chantagem, mas mesmo assim, não estava dando certo. Foi então que pegaram as malas.
-E essa aqui? De quem é?-perguntou um dos ladrões, parecia ser o mais velho, devia ter seus 19 anos.
-É minha.
-Cadê a chave doido?
-Tá lá em cima, no ônibus.
-Corre lá e pega.
Fui pegar, pensando em loucuras, como bater num dos capangas que foi comigo, baichinho e de olhos arregalados. Parecia ser a sua primeira vez. Procurei a chave, vi que deviam tê-la levado, pois estava presa no celular. Continuei procurando, pra parecer mais óbvio aos símios que realmente não estava lá. O rapazola era assim esguio e fracote, realmente me deu ganas de lhe tomar a arma. Mas eu estava tão calmo, estava tão tranquilo comigo mesmo, estava atribuindo a tranquilidade à minha fé... Bem, fé demais fede. Desci pra estrada novamente.
-Não tava lá, um de vocês a pegou por engano com meu celular.
-Num tem coisa valiosa aê dentro, não, né doido?
-Tem não, bixu! Tu não quer estourar esse cadiado, não? Dá um tiro aê.
-Rapá, tu não vai me fazer gastar uma bala. O que qui tem aê?
Fiquei com vergonha de dizer. Quando fiz as malas, estava tão doido que soquei minhas roupas, alguns documentos e meus allstar como se fossem lixo, e fechei o cadeado. Estava doido, e atrasado pro embarque.
-Bixu, só tem meu allstar e umas roupas.-na verdade eu não me lembrava muito bem o que realmente tinha.
-Beleza...
Depois fizeram um acordo de o motorista esperar meia hora até sair. Ao sairem, um diálogo simples descreve a cena.
-Meu jovem, você tem fogo?-perguntou um velhinho, tirei o fósforo do bolso-Obrigado!-e acendeu um cigarro.
-Hey, você tem cigarro?-perguntou uma jovem, dei dois, um a ela e outro à amiga-Obrigado!
-Aceita?-ofereci um cigarro ao motorista, quando o vi com o olhar perdido pro ônibus.
-Obrigado.
Todos fumando pra relaxar, foi hilário. Alguns sacaram seus próprios isqueiros, outros seus baratos derbys. Bem, pelo menos eu estava com meu Black. Descalço, suado e com os pés de todd mais horríveis que um goiano pode ter... Mas estava fumando Black! Grande merda, hein. O tiro, fui ver ao subir no ôinibus, atravessara o vidro das poltronas da frente, onde eu estava sentado. Pegou bem acima de nossas cabeças, da minha e da do gago. Com um pouco de sorte, acertou meu teclado, que estava encaixado num compartimento sobre nossas cabeças. Assim espero... Malditos.

Au revoir

2 comentários:

tutaméia disse...

".....a moenda esmaga
a cana plantada
em terra de gerente,
capitães, banqueiros
sultões...
meus pêsames
ao pequeno mundo
de tantos cidadãos-menos.
gado-gente. sub-servis.
ônus. o povo sem lugar marcado na economia do mercado.
...."

que historia...

Lunna disse...

Tenho que parar de acreditar em tudo que me dizem.