Qualquer memória da juventude cabe em um gole de uma cachaça envelhecida fabricada em Paraty. Primeiro, sirva-se de uma dose em um pequeno e
confortável copo. Observe o líquido, sua tensão superficial, seu aroma, note
uma pequena mancha afastada das bordas que tocam as paredes do copo. Fique um
minuto em silêncio e olhe o sol, onde quer que esteja, precisará dele. Perceba
onde você está. Considere os pontos cardeais e a referência solar, sinta a
distância estendida daí até os lugares em que já esteve e foi feliz. Volte-se na
direção e sentido de um lugar em que suas memórias afetivas lhe tocam fortemente.
Leve o copo à boca e sugue apenas uma pequena quantidade, segurando este mínimo
gole por um segundo entre a língua e o palato. Inspire e engula de olhos
fechados. Ainda no escuro, enquanto se abre o sabor da cachaça e é possível
sentir desenvolver-se a leve dormência nos lábios, na garganta e no topo da
língua, bem ali, poderá acessar um bocado de cenas que certamente vão lhe
surgir. Desfrute, nomeie-as, lembre as pessoas e um pouco do contexto envolvido,
deixe-se levar pelo texto narrativo que começará a falar dentro da sua cabeça e
reviva um pouco aquilo tudo, antes que o som ao redor lhe traga de volta ao
presente. Perceba o retro gosto fantástico dessa cachaça.
sábado, 11 de julho de 2020
quarta-feira, 13 de maio de 2020
domingo, 12 de abril de 2020
Hiato em três vozes
O
indivíduo é miserável quando tem a obrigação inexorável de
produzir. E isto não é uma questão inscrita na oposição
politico-partidária inescapável aos anos 10 e 20 do vigésimo
primeiro século da história ocidental. Apelo à experiencia pessoal: Frustrações. Em construções coletivas, linhas de
pensamento errantes em busca incerta por iluminação no devir do
percurso, com efeito, tem sempre menos valor que sólidas e assertivas colocações claras, tradicionais e lapidares. Em
processos criativos isso deveria ser a morte um retumbante contrassenso.
Um texto é sempre fragmento da biografia do autor. Contudo,
limitar-se a usar referências pessoais é deselegante e denuncia uma
percepção limitada a própria imediação, e assim, perigosamente inócua. Melhor seria relativizar conclusões de
análises particulares, segmentadas e parciais sobre a própria
vivência. O humano é um prisioneiro das aparências. Para conceder um envólucro científico a pequenos ensaios, estabelecendo premissas consistentes, talvez fosse
necessário concordar que a capacidade cognitiva,
embora limitada a extensão do raio atingido por nosso olhar, é potencializada
em movimento, ao se ampliar a varredura da paisagem a medida em que
ela é desbravada. Ocultar as evidências incultas do orador, emulando com pedantismo o ar e o aspecto do intelectual. Uma boa e oportuna metáfora, de modo simples, amplia o universo da experiência pessoal, infla o estofo de uma argumentação. Máquinas, lavadeiras, mendigos, corvos e florestas - mecanismos para observar nossa própria vivência de um lugar possivelmente novo, completamente débil, mas privilegiado apenas pela mira enviesada. "Sua fraqueza é também a sua força." Todo o esforço de construir ideias embrionárias em termos compreensíveis e compartilháveis é lícito, mas deixa sempre vestígios rastreáveis pelo olfato. O cão caçador não pensa em muito mais que encontrar sua presa, sequer considera assassiná-la, mas a segue impiedosamente, farejar é sua mortífera compulsão. Ilumina-se, surpreendentemente, uma pista. Corremos como um cão que também é presa. Locomover-se adquire um duplo valor.
(Hiato)
Voltemos a primeira afirmação deste texto, já parece mais e mais correta. O encadeamento antagônico de miséria e valor, num mesmo corpo vivo, não é natural. Sinto tais tensões em meus músculos.
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