sábado, 11 de julho de 2020

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Qualquer memória da juventude cabe em um gole de uma cachaça envelhecida fabricada em Paraty. Primeiro, sirva-se de uma dose em um pequeno e confortável copo. Observe o líquido, sua tensão superficial, seu aroma, note uma pequena mancha afastada das bordas que tocam as paredes do copo. Fique um minuto em silêncio e olhe o sol, onde quer que esteja, precisará dele. Perceba onde você está. Considere os pontos cardeais e a referência solar, sinta a distância estendida daí até os lugares em que já esteve e foi feliz. Volte-se na direção e sentido de um lugar em que suas memórias afetivas lhe tocam fortemente. Leve o copo à boca e sugue apenas uma pequena quantidade, segurando este mínimo gole por um segundo entre a língua e o palato. Inspire e engula de olhos fechados. Ainda no escuro, enquanto se abre o sabor da cachaça e é possível sentir desenvolver-se a leve dormência nos lábios, na garganta e no topo da língua, bem ali, poderá acessar um bocado de cenas que certamente vão lhe surgir. Desfrute, nomeie-as, lembre as pessoas e um pouco do contexto envolvido, deixe-se levar pelo texto narrativo que começará a falar dentro da sua cabeça e reviva um pouco aquilo tudo, antes que o som ao redor lhe traga de volta ao presente. Perceba o retro gosto fantástico dessa cachaça.

quarta-feira, 13 de maio de 2020

domingo, 12 de abril de 2020

Hiato em três vozes



O indivíduo é miserável quando tem a obrigação inexorável de produzir. E isto não é uma questão inscrita na oposição politico-partidária inescapável aos anos 10 e 20 do vigésimo primeiro século da história ocidental. Apelo à experiencia pessoal: Frustrações. Em construções coletivas, linhas de pensamento errantes em busca incerta por iluminação no devir do percurso, com efeito, tem sempre menos valor que sólidas e assertivas colocações claras, tradicionais e lapidares. Em processos criativos isso deveria ser a morte um retumbante contrassenso. Um texto é sempre fragmento da biografia do autor. Contudo, limitar-se a usar referências pessoais é deselegante e denuncia uma percepção limitada a própria imediação, e assim, perigosamente inócua. Melhor seria relativizar conclusões de análises particulares, segmentadas e parciais sobre a própria vivência. O humano é um prisioneiro das aparências. Para conceder um envólucro científico a pequenos ensaios, estabelecendo premissas consistentes, talvez fosse necessário concordar que a capacidade cognitiva, embora limitada a extensão do raio atingido por nosso olhar, é potencializada em movimento, ao se ampliar a varredura da paisagem a medida em que ela é desbravada. Ocultar as evidências incultas do orador, emulando com pedantismo o ar e o aspecto do intelectual. Uma boa e oportuna metáfora, de modo simples, amplia o universo da experiência pessoal, infla o estofo de uma argumentação. Máquinas, lavadeiras, mendigos, corvos e florestas - mecanismos para observar nossa própria vivência de um lugar possivelmente novo, completamente débil, mas privilegiado apenas pela mira enviesada. "Sua fraqueza é também a sua força." Todo o esforço de construir ideias embrionárias em termos compreensíveis e compartilháveis é lícito, mas deixa sempre vestígios rastreáveis pelo olfato. O cão caçador não pensa em muito mais que encontrar sua presa, sequer considera assassiná-la, mas a segue impiedosamente, farejar é sua mortífera compulsão. Ilumina-se, surpreendentemente, uma pista. Corremos como um cão que também é presa. Locomover-se adquire um duplo valor. 
(Hiato)
Voltemos a primeira afirmação deste texto, já parece mais e mais correta. O encadeamento antagônico de miséria e valor, num mesmo corpo vivo, não é natural. Sinto tais tensões em meus músculos.